Na cabeça de Samuel Beckett

RUI MANUEL AMARAL*

Tania Bruguera montou Endgame no interior da cabeça de Samuel Beckett. Por dentro, tudo é branco. Paredes brancas, chão branco, “tão branco, tão limpo”, ou melhor, sem cor, um “deserto”. No centro, um homem cego, Hamm, preso a uma cadeira de rodas. Através de uma abertura na cabeça, outro homem, Clov, entra e sai, coxo, incapaz de se sentar. Clov é uma espécie de escravo de Hamm. A verdade, porém, é que Hamm depende de Clov, escravo do seu escravo. E ambos são escravos da cabeça de Beckett.

A cabeça de Beckett está apoiada numa impressionante estrutura espiralada em ferro (trata-se de uma grande cabeça, pesada, cilíndrica, a testa muito alta). O interior é inacessível ao público, excepto através de pequenas aberturas onde só cabe, justamente, a nossa cabeça. 60 cabeças dentro da cabeça de Beckett. 60 cabeças a observar o que ali se passa, a olhar directamente Hamm e Clov, olhos nos olhos, ou, dito de outro modo, a olhar directamente as formas criadas pelo pensamento do autor.

Mas o que vemos é apenas o que Beckett quer que vejamos. Quando a peça termina, retiramo-nos e abre-se um outro espaço em branco, um outro mistério: o que acontece no interior da cabeça de Beckett quando não estamos a espreitar? Que personagens habitam essa “pequena plenitude perdida no vácuo”? O jogo, na verdade, não tem fim. A partida continua dentro da nossa cabeça. As perguntas ressoam, formuladas por 60 cabeças que espreitam por dentro de nós, como numa espécie de mise en abyme.

Estamos tão presos a este jogo como os personagens de Endgame. E ainda que consigamos mover-nos, ainda que não sejamos coxos, paralíticos ou cegos, ainda que consigamos entrar e sair da cabeça de Beckett, não saímos efectivamente para lado nenhum. “Do outro lado é… o inferno.” Mas o que é o “outro lado”? De que lado nos achamos? Não seremos nós os verdadeiros personagens de Endgame?

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Dir-me-ão que isso é na minha cabeça, e parece-me com efeito frequentemente que estou no interior de uma cabeça, que estas oito, não, estas seis paredes são de osso maciço, mas daí a dizer que é na minha cabeça, não, isso nunca.

Samuel Beckett, Malone Está a Morrer.

Trad. Miguel Serras Pereira.

*Escritor, editor.

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20+21 Abril 2017
Mosteiro de São Bento da Vitória

Endgame

de Samuel Beckett
direção Tania Bruguera
coprodução BoCA Bienal, Colectivo 84, Festival d’Automne à Paris/Fondation d’Entreprise Hermès, Théâtre Nanterre-Amandiers, Kunstenfestivaldesarts, International Summer Festival Kampnagel, Estudio Bruguera, Teatro Nacional São João | BoCA – Biennial of Contemporary Arts

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia Susana Neves