Tu dormes, ó Aquiles, e já te esqueceste de mim.
Ilíada, Canto XXIII, vv. 69. Trad. Frederico Lourenço.
Teatro: que coisa será hoje, que já não é ritual religioso, pedagogia, lição moral, convívio social, manifestação de poder e pompa, entretenimento musical ou única forma socialmente correta de olhar os corpos dos outros?
Karl Valentin achava que deveria haver teatro obrigatório, como a escola, os impostos, o andar pela direita na via pública. Mas o luxo do teatro está em não ser obrigatório, em escolher viver um lugar e um momento com outros. Está em espreitar o rosto dos espectadores para descobrir se estão a viver o mesmo que nós, se são semelhantes a nós de alguma forma.
O que terão visto os espectadores que viram comigo A Ilíada – Canto XXIII, dirigido por Anatoli Vassiliev, no Teatro Carlos Alberto, no ano de 2004? Lembro-me do espetáculo como se fosse uma cicatriz, mas não me lembro de quem também o olhava. Do alto do balcão lateral onde me sentava, vi as túnicas, as varas, a cenografia descarnada como a imagem remanescente de um sonho. Lembro-me do meu espanto perante os gestos milimétricos, como se os atores tivessem abandonado toda a humanidade para se tornarem riscos na pedra, esgares de um tempo impresso nos nossos genes que era tão vivo como se fosse o nosso próprio tempo.
Sim: sem vidas passadas, nem reencarnações, nem reconstituições históricas, eu vivi o funeral de Pátroclo. Na encenação de Vassiliev descobri a beleza fatal das palavras da Ilíada, o maior monumento que a humanidade já dedicou à morte, onde esta nos é mostrada pura e sangrenta, e do único modo como a conseguimos compreender: como dança e ritual.
É esse o espetáculo de morte de Vassiliev que recordo: uma dança lenta de corpos e de panos, os bonecos derramados em montes como se fossem pilhas de cadáveres, a coreografia da extinção – a extinção de Pátroclo, de Heitor, de Aquiles, de Páris, de Helena, a extinção de Troia, a extinção do milagre grego, a nossa extinção, a extinção do próprio teatro de Vassiliev, cuja força está na sua morte, tal como a força de Pátroclo está na sua morte, a única capaz de acender a fúria de Aquiles, e também a sua piedade. A nossa.
O movimento espectral, os rostos-caveiras, os textos como gritos e como legendas – essa máquina de roubar texto aos atores –, como se as figuras em palco não tivessem palavras próprias, tal como não as tiveram os adolescentes gregos e troianos que se mataram nas planícies da Anatólia, deles apenas restando as palavras de Homero. E eu interrogo-me que palavras nossas é que ficarão no mundo, e se de nós não sobrarão mais do que os nossos corpos imóveis, que um dia se agitam e depois se tornam bonecos inertes.
É esse boneco inerte ou cadáver de Pátroclo que Heitor se ocupa a enterrar no Canto XXIII da epopeia grega, dedicando-lhe os complicados jogos fúnebres dos helenos – tornando assim teatro a morte do seu companheiro. E Vassiliev dá-nos essa encenação da morte com outra encenação da morte – de corpos desmembrados e rostos torcidos de horror e de sofrimento. Nunca vi, desejo nunca ver, uma matança, mas se um dia visse, suspeito que seria como este teatro.
Provavelmente não tornarei a ver um espetáculo assim. Capaz de roubar quase todos os verbos deste texto, e torná-lo estático como a inscrição de uma pedra tumular. Tenho saudades dele como se tem de um familiar perdido – misto de fantasmagoria, perplexidade, punhal cravado. E ele volta-me à memória, como o fantasma de Pátroclo voltou para junto de Aquiles, para dizer que ainda não o compreendi, ainda não lhe prestei a devida homenagem, e que ele vai continuar a ser uma labareda na minha memória de espectador da grande vida do teatro.
*Escritor.
_
22-28 Novembro 2004 Teatro Carlos Alberto