A minha vida portuense está intrinsecamente amarrada à vida cultural da cidade e, por maioria de razão, ao Teatro Nacional São João.
As extraordinárias viagens com Vassiliev ou Nekrosius, os já deuses do Olimpo, ou Os Gigantes da Montanha, do Corsetti, que, na memória afetiva, é a minha primeira reportagem no Porto, e tantos outros espetáculos, que por vezes não são já mais do que fragmentos, ainda assim inesquecíveis, muitos dos quais devemos a Ricardo Pais.
Mas há, no entanto, uma peça a que sempre me sentirei especialmente ligada.
Em 2017, 20 anos depois de me ter mudado para o Porto, fui convidada pelo então diretor artístico, encenador, figurinista e artista de tantas artes Nuno Carinhas (e, claro, o Pedro Sobrado andou completamente metido nisto), a acompanhar, enquanto jornalista da SIC, uma das mais importantes produções da temporada: Macbeth, de William Shakespeare.
Durante dois meses, eu e o meu colega repórter de imagem, Carlos Morais, vivemos colados ao quotidiano de Macbeth: inicialmente, na fase de leituras no Mosteiro de São Bento da Vitória, com o elenco, sob a inteligente e subtil direção de Nuno Carinhas, que permitiu, sem complexos, o escrutínio semanal de uma câmara de televisão – eu, de tal modo embrenhada na tarefa, que uma vez por outra deixava escapar uma deixa; ou na oficina da Rua da Porta do Sol, com a equipa da mestra Nazaré Fernandes, tímida perante as câmaras mas estrela da costura teatral, ou com o aderecista Guilherme Monteiro, que pôs a cabeça de Macbeth numa estaca; em Gaia, na carpintaria do senhor Josué Maia, que, por acasos de vária ordem, se viu metido nestas coisas dos teatros e nunca mais quis outra coisa; no ateliê do designer Luís Cerqueira, que tinha a seu cargo uma das mais importantes peças do cenário e que, entretanto, deixou o centro da cidade por aquelas razões do nosso tempo que obrigam tantos a deixar o centro da cidade; e depois, já nesse palco de sonhos, teatro à italiana, nacional e tudo, chamado São João, com as diferentes equipas técnicas; e num ensaio corrido, tudo a postos para o grande dia, só uma interrupção do mestre de armas Miguel Andrade Gomes por causa da cena do punhal; e depois o grande dia, borboletas no estômago como se fosse uma coisa minha, o meu querido João Reis a fazer a cena do punhal de uma forma completamente diferente da que eu tinha visto há um par de dias, as cortinas gigantes do Luís Cerqueira a deslizarem sob as calhas como manteiga, a Emília Silvestre em grande, porque é a Emília, e a Diana e a Joana e os outros Joões, o Cardoso e o Castro, e o Mota e o Calatré (gigante, com a cabeça de Macbeth pregada na estaca) e o Freixinho, e essa força da natureza chamada Sara, e todos os maquinistas e eletricistas e montadores, como o Pêra “Filho”, que gosta de dizer que os técnicos são “atores escondidos” e é herdeiro desse eterno frente de casa, o já desaparecido Senhor Pêra, e o Nuno Meira, que desenhou a luz, e o Francisco-no-som-Leal e toda aquela gente, que é também um bocadinho a minha gente, mais de 60 pessoas, ao todo, que deram forma a uma produção daquela a que Lampedusa chamou a “obra perfeita”.
Por fim, os aplausos. O triunfo.
Tudo isto, muito menos que isto, dois meses de trabalho, horas de gravações, condensadas numa reportagem de 12 minutos a que chamámos “Nos bastidores de Macbeth”.
E, no entanto, ainda hoje tenho “escorpiões dentro da minha cabeça”.1
1 Macbeth, Ato III, cena 2.
*Jornalista.
_
1-22 Junho 2017
Teatro Nacional São João