Um “barroco discreto”

Isabel Pires de Lima*

Não sendo especialista em teatro, sou espectadora assídua do Teatro Nacional São João. A lista das representações a que assisti é longa e a memória, como sabemos, curta.

Porquê O Grande Teatro do Mundo, de Pedro Calderón de la Barca, com encenação de Nuno Carinhas e cenografia de Nuno Lacerda Lopes, no ano de 1996? Não o saberei justificar tecnicamente. Direi apenas que foi esta peça de Calderón de la Barca a que me saltou da memória. Memorável. Desde logo, porque retenho ter sido uma das encenações, no sentido global do termo – “pôr em cena”, isto é, “dispor as coisas com o fim de iludir” –, mais bem conseguidas a que me lembro de assistir. Calderón de la Barca é, como sabemos, um nome grande do Siglo de Oro da literatura espanhola, um dos expoentes máximos do modelo teatral barroco. A temática da peça é, no essencial, a de todas as outras grandes obras do autor, a reflexão filosófica de cariz moralista sobre as questões fundamentais da sua (nossa) época: a honra, o dever, mas também a imodéstia, a ganância, a ambição, nomeadamente pelo Poder.

Ora, a encenação conseguiu, com uma rara harmonia, acomodar na complexidade da sua criação todos os elementos constituintes do espectáculo teatral: figurinos, luz, equilíbrio cromático, definição das marcações, duração, ritmo narrativo, excepcionalmente enfatizado pela intervenção musical – e sabemos como a música foi uma mais-valia introduzida por Calderón de la Barca na produção teatral. E conseguiu-o sem cair no excesso visual e dramático da estética barroca, que, à primeira vista, poderia ser a solução mais óbvia. Vivi a apresentação como uma experiência de um “barroco discreto”, sem ter perdido a intensidade dramática do universo barroco. Acresce o efeito introduzido no texto pela criação de subtis elementos cénicos, por vezes irónicos, que contribuíram para lembrar ao espectador que não estava a assistir a uma peça “histórica” dos séculos XVI e XVII da cultura espanhola, mas a uma reflexão cuja temática e mensagem se mantinham/mantêm perfeitamente actuais.

Impossível não referir em particular a interpretação de João Reis, então já iniciado na sua brilhante carreira como um dos nomes em consistente ascensão no elenco teatral nacional. O seu contributo para o nível geral da apresentação da peça – nomeadamente uma primorosa contenção representativa (movimentos, gestos, voz, olhar, postura) – foi outro dos elementos que encaixaram na perfeição, por assim dizer, numa produção teatral que guardo como um dos momentos mais inesquecíveis dos muitos a que assisti no Teatro Nacional São João.

O teatro convoca todas as possibilidades cognitivas e emocionais de que o ser humano é capaz, mas eu vivo o teatro, antes de mais, como uma experiência eminentemente visual; neste caso, uma experiência belíssima.

*Professora Emérita da Universidade do Porto.

_

19-27 Setembro + 12-27 Outubro 1996
Teatro Nacional São João

O Grande Teatro do Mundo

de Calderón de la Barca
encenação Nuno Carinhas
produção Teatro Nacional São João

_

in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1