Um auto de extermínio em curso

DANIEL JONAS*

Dos muitos espectáculos importantes na minha formação enquanto espectador, A Salvação de Veneza de Thomas Otway, apresentado no Teatro Nacional São João em 1997, é, certamente, um marco importante num período baptismal da minha experiência de ir ao teatro. Na memória guardo um borrão de fogo, uma espécie de auto de extermínio em curso, as altas temperaturas da coisa política, o sangue, os amores, a lealdade, a traição, aquelas volutas carmesins da libidinosa estética paisiana ali tão intensamente teatrais, ou como a cortina – essa ferramenta tão simbolicamente teatral – se constituía à uma como pano de marcação, adorno, mas também, e muito especialmente, carne da matéria teatral. Não é tanto a peça ou pela peça, ainda que a peça seja um momento forte da história do teatro, excêntrica a Shakespeare e até a Marlowe, antes mais um certo tratamento sensorial, uma certa experiência do espectador que é embebido numa estética, numa proposta lúbrica de aliar as libertinagens adriáticas a um golpe de Estado. Eros e política desembocam naquelas águas sórdidas e escuras de Veneza, naquele poço que se abre no meio da cena, no restolhar dos figurinos, no intenso convite das falas que se prolongam perigosamente dos “argumentos entediantes de intenção sinuosa” do poema, sem que, todavia, ali se consumam.

Há muitos teatros dentro do teatro, e este é apenas um teatro possível e, obviamente, uma de muitas possíveis direcções para aquela peça, mas deixei de conceber um Otway alternativo, tão impositivo o chamamento daquela composição específica.

Da minha imersão cultural nesses idos inícios de 90, poderia destacar também O Conto de Inverno de Shakespeare pela Cornucópia no São Luiz ou, por exemplo, Ñaque ou Sobre Piolhos e Actores de Sinisterra pelo Meridional no CCB (não falando na muito teatral Lúcia Sigalho e na teatralmente cinematográfica trilogia de Pasolini no Cinema Nimas). E, insisto, poderia escolher dezenas de outras peças da produção do TNSJ, mas este espectáculo com Del-Carlo e Reis em Pierre e Jaffeir é um momento especialmente marcante da pletora do Nacional, uma caixa onde a magia de suspensão da descrença acontece de um modo muito particular e particularmente afectivo para mim.

*Poeta.

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21 Março – 17 Abril 1997
Teatro Nacional São João

A SALVAÇÃO DE VENEZA

de Thomas Otway
encenação Ricardo Pais
produção Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

fotografia João Tuna