Pronuncia-se “Gilhi” | In memoriam Paulo Eduardo Carvalho (1964-2010)

RUI PINA COELHO*

La mémoire est à la fois un héritage et une contrainte.

Georges Banu

Quando entramos num teatro nunca conseguimos prever onde iremos arrumar o que ali vamos viver. É impossível saber, quando compramos o bilhete, como acabaremos. Em rigor, não sabemos quem seremos quando tudo aquilo terminar. Tenho espectáculos guardados em salas escuras onde nunca mais entrei, aguardando, talvez, que me chegue a coragem de lhes dar luz; e outros espectáculos delicadamente arrumados em quartos bonitos, iluminados a luz de candeeiro, acotovelando-se sem decoro para me trazerem um sorriso feliz com a sua lembrança. A outros perdi-os de vista. Outros atravessaram-me e continuaram o seu caminho.

O Concerto de Gigli, um espectáculo da ASSéDIO – Associação de Ideias Obscuras, de 2008, com texto do dramaturgo irlandês Tom Murphy, com encenação de Nuno Carinhas e interpretação de João Pedro Vaz (JPW King), João Cardoso (Homem Irlandês) e Rosa Quiroga (Mona), para mim, lembrar-me-á sempre o Paulo – o Paulo Eduardo Carvalho. O Concerto de Gigli (pronuncia-se “gilhi”), para lá de ter sido, muito provavelmente, o último espectáculo que vi com a Raquel antes do nascimento da nossa Leonor; para lá de ser o espectáculo onde descobri a aridez lírica de Tom Murphy; para lá da radiosa interpretação de um João Pedro Vaz em grande forma, enquanto JPW King, uma espécie de curandeiro ou “dinamatologista” inglês; para lá de ver na reedição do trio de intérpretes uma reminiscência de O Fantástico Francis Hardy, Curandeiro, de Brian Friel, também da ASSéDIO (2000); para lá disto tudo, O Concerto de Gigli lembrar-me-á sempre e sobretudo o Paulo Eduardo Carvalho.

Foi o Paulo que me recebeu a mim e à Raquel no Porto e nos acompanhou até ao Teatro Carlos Alberto; foi o Paulo que nos esperou para uma ceia e para uma animada discussão sobre o espectáculo e sobre a nossa iminente paternidade; foi o Paulo que com a sua rara delicadeza me corrigiu e me impediu de continuar a dizer “guigli” em vez de “gilhi”; é ao Paulo que devo a descoberta de Tom Murphy, Brian Friel (e de muitos outros autores e coisas da vida). E, ainda hoje, sempre que estou com o João Pedro ou com o Nuno Carinhas, me lembro do Paulo.

Este extraordinário professor, crítico, tradutor, ensaísta, dramaturgista, o Paulo Eduardo, inventou um dos mais importantes capítulos da história do teatro no Porto. O seu apurado conhecimento sobre a dramaturgia contemporânea, com fino recorte na irlandesa, e a qualidade das suas traduções foram determinantes na escolha repertorial das companhias com as quais privava intelectualmente. Com efeito, assinou traduções para o CDIAG – Centro Dramático Intermunicipal Almeida Garrett / Teatro da Malaposta / Teatro dos Aloés, com quem partilhava o interesse pela dramaturgia de Brian Friel, Luigi Lunari, Athol Fugard ou David Harrower; e de Caryl Churchill e Friel para a Escola de Mulheres. Mas também os Artistas Unidos e a Cão Solteiro utilizaram traduções suas de Harold Pinter; a Companhia Teatral de Almada, de Howard Barker; o Teatro Meridional, de Martin McDonagh; o Teatro da Rainha, de Martin Crimp; ou o Teatro O Bando, de Bruno Stori, a título de exemplo. Mas, em rigor, o impacto do seu trabalho seria mais visível no seu Porto. O TEP, Ensemble, As Boas Raparigas…, o Teatro Nacional São João, e, é claro, a ASSéDIO, companhia de que era membro fundador, todos enriqueceram os seus repertórios com as propostas e traduções de autores como Alan Ayckbourn, Marie Laberge, Martin Crimp, Brian Friel, Howard Barker, Luigi Lunari, Wallace Shawn, Raimondo Cortese ou Samuel Beckett. O seu prematuro desaparecimento privou-nos não só da sua luminosa companhia, como também da riqueza do seu conhecimento e entusiasmo pelo teatro. E, com ele, encerrou-se um capítulo da história do teatro no Porto.

O Concerto de Gigli reunia muitas características que traduziam o gosto do Paulo no teatro. O cultivo de uma melomania erudita, o prazer de apresentar um autor inédito em Portugal, um debate entre uma tradição popular e uma cultura cosmopolita, uma linguagem de pulsão lírica e, simultaneamente, de impressivo realismo. Todos estes aspectos se condensavam neste espectáculo.

Nunca sabemos, mesmo, onde vamos arrumar o que vivemos durante um espectáculo. Regressar à memória deste “gilhi” é voltar a um tempo e a um lugar, hoje, distantes. É uma memória que me serve de rampa para regressar ao sorriso e à inteligência do Paulo. E, só por isso, é um espectáculo que me transforma, ainda hoje, 11 anos depois da sua estreia.

*Dramaturgo, professor, investigador teatral.

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24 Outubro – 9 Novembro 2008
Teatro Carlos Alberto

O CONCERTO DE GIGLI

de Tom Murphy
encenação Nuno Carinhas
produção ASSéDIO – Associação de Ideias Obscuras
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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias
Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna