A flor do amor-perfeito acompanha os espectadores de teatro. O seu efeito, tal como sabia Oberon em Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare, leva aquele que recebe o seu suco nas pálpebras a apaixonar-se pelo primeiro ser que vir, ao abrir os olhos. É também muito esta a magia do teatro: seduzir-nos pelas primeiras palavras, prender-nos aos primeiros corpos que dão voz e vida aos conflitos e dramas da Humanidade de todos os tempos.
Alma impôs-se-me como um estranhamento, com as palavras iniciais de Miguel Loureiro, que resgatavam da memória do mundo literário um introito que substituía com inexcedível vantagem o prólogo vicentino de Santo Agostinho, que sintetiza o assunto do auto e orienta a sua descodificação enquanto alegoria, logo de início. Esta voz inaugural trazia-me a memória quase genesíaca da criação, com uma personagem nova e desconhecida, de estatuto inicialmente indefinido, que pela palavra (re)criaria a alma, num mundo já caído. “Vamos a ver se te levanto”, dizia a voz, “vamos a ver se pode ser”, “vamos a ver se eu te crio”… Era a voz demiúrgica do encenador, em uníssono com a de Nemésio e com a de Deus, num Fiat imenso, a levantar o mundo. Atrevo-me a chamar personagem-texto a essa personagem que, extrapolando a peça vicentina, nela se entrincheirava como posto de vigília e dava origem à ação, ao mesmo tempo que convocava outras vozes poéticas que, convergindo com a de Vicente, lhe conferiam intemporalidade. Deambulando entre seis corpos masculinos deitados em posição semifetal, a personagem-voz deteve-se e, baixando-se, apanhou um punhado de terra. Adivinhei então, sob as duas paletes de madeira alinhadas lado a lado na cena ainda envolta em penumbra, essa terra que ainda não percebera, mas que a palavra poética anunciara já: “Na minha lama azeda e quente/ crias a tua forma.” De seguida, avançando para a palete à esquerda do espectador, a mesma personagem-voz tocou a mão de um outro corpo isolado, que aí jazia, e animou-o. E eis que, na luz que se acendeu em palco, uma alegoria de cinco séculos se expressava aos nossos olhos de agora, na pele de uma maratonista que marchava em fato de treino, porque “planta caminheira”. Simultaneamente, os seis corpos da direita também se erguem (são anjos, afinal!), multiplicando exponencialmente a proteção singular prevista por Vicente. Caminhando juntos com Alma (num tempo marcado por fôlegos de esforço e passos que ecoavam em nós memórias de tropas e de lutas), acompanhavam-na na sua corrida de fundo, ora cansada, ora tentada, de novo resgatada para o encontro salvífico, numa tensão escatológica entre o “já” e o “ainda não”, expressa plasticamente no gesto várias vezes reiterado das mãos da Alma e do criador, que se atraem e buscam, mas não se tocam. Momentos que convocavam no corpo em cena um diálogo que transcendia todos os espaços e tempos, e que, fixado intemporalmente por Michelangelo na Capela Sistina, ali se replicava. E toda a sala se tornava então, por momentos, capela, irmanando atores e espectadores nesse intervalo da espera, que impede a unidade.
Fui ver Alma três vezes, fascinada pela encenação, pela representação e pela beleza surpreendente do texto vicentino animado pela voz em cena. O saial vermelho que o diabo tentador ofereceu à Alma é e foi um ícone da peça. As dobras, voltas e laçadas que o diabo lhe deu, adornando com ele a Alma seduzida, foram gestos de coreografia pura. Mas guardo também, ainda hoje, impressivamente, a imagem da Alma no final da caminhada, metamorfoseada em Cristo na Paixão e, finalmente, materializada numa pietas, corpo morto nos braços do Anjo que a sustém e acompanha, e de que se libertará em direção ao Homem Novo.
“Se se pudesse dizer […]/ se se pudesse fazer/ podermos ver!”, suplica o desejo que brota na prece do texto vicentino e que o espetáculo acende numa intensa realização em coro. Ora não é o teatro esse privilegiado lugar para se olhar e ver? Alma pingou nos meus olhos o colírio do amor-perfeito.
*Professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tradutora.
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9 Março – 1 Abril + 12-28 Abril 2012
Teatro Nacional São João