Poderosa Afrodite

FERNANDO MORA RAMOS*

Ao Lavrador levam Margaretta, a amada. Para lá da vida, do convívio dos corpos, casamento recente, primeira criança. É um acto de colheita injusto: tão nova, morte de parto? Esta violência, o Lavrador/escritor – a charrua é a sua pena – não aceita. Torna-se sob o impacto da dor um revoltado, herege. Ao tempo, sob o império absoluto da lei divina – totalitarismo sem nódoa, tão absoluto que nem Zeus, o que paria pela perna, o sonhou –, só a forca o poderia esperar. Afrontar a Morte, torná-la debate, era afronta a Deus. A inteligência humana teria de esperar muito para poder esboçar sentimentos e razões de forma intuitiva ou iluminada, livremente, sem medo ou autocensura. E é isso que Johannes von Saaz faz, usando a razão livre, é isso que faz o homem de Leis Saaz: num longo diálogo com a Morte ele desafia a Ordem Celeste, sob a forma de um poema polemizado, uma disputatio, figura de retórica com regras estritas. À força cega da Morte, empregada de Deus, “científica nos argumentos”, malthusiana (leis impostas aos vivos), opõe o Lavrador a sua paixão e através dela tenta o regresso da amada, essa utopia, como Orfeu que ousou trazer Eurídice já dos infernos – aqui não seria o caso, Margaretta regressaria do Céu. E se o regresso lhe é negado, não é possível, e não é, este combate dialogal faz-se como caminho de um luto libertador.

Sei bem que o uso da memória pode ser lamechas. E nunca me passara pela cabeça – andava no teatro desde 1971 e na profissão desde 75 – fazer em cena um poema de amor dialogado “juridicamente”.

Com Sarrazac, desde 1983-84, a minha perspectiva teatral alterou-se, abriu-se à diversidade ilimitada das estruturas dramáticas contemporâneas. A lição que recebi e assumi, percebendo que me trazia uma nova dimensão de ser livre, aprofundada, foi a de que não há oposição entre um teatro da história e a emergência da subjectividade – uma dimensão íntima e autoral, directa, não ilusiva – nas escritas do teatro, em cena. Se os grandes confrontos se lêem no anonimato sistémico cego das forças que os conduzem – as grandes estruturas de conformação e revolução –, é no olhar individual que podemos ler a subtileza dos processos, a vida a pulsar. Do lado de fora, as engrenagens das forças em confronto, a grande manipulação – e a ordem do Grande Outro na cabeça dos mortais; nas paredes interiores das casas, outros conflitos, pequenos, porventura, insignificantes ao lado do processo histórico, tudo significando do lado da vida.

A relação entre o íntimo e o político foi o que aprendi com Sarrazac. Quando o convidei a encenar no CENDREV (era director artístico sob controlo do secretariado do CC local, mui ciumento e algo básico), ele respondeu com O Lavrador da Boémia, clássico boémio do século XV. Conhecera-o pela via do amigo Schiaretti – director em Reims e depois em Chaillot-TNP – e vira Olivier Perrier no papel do Lavrador.

Sarrazac pensou o texto porque pensou no Gil Nave – tocando saxofone e actuando como o Miles Davis final, infernal nas lantejoulas feéricas – e pensou que eu aguentaria a barra do Lavrador: isto é, nada na manga, palavras e coração, razão lógica sequencial. Já agora: texto aprendido de coração é proclamado – palavra lançada ao Cosmos – com ritmo concreto ancorado na respiração cardíaca, desequilibrado, palavra taquicardíaca.

O primeiro Lavrador da Boémia – houve dois e os dois visitaram o Porto: o primeiro, no Teatro Nacional São João, à Batalha; o outro, no claustro do Mosteiro de São Bento da Vitória – fez o seu caminho entre a referência aos Bonecos de Santo Aleixo e os painéis do João Vieira, um retábulo, como na pintura religiosa, falando da precariedade da vida e do poder absoluto do Criador. E também através das falas-solos-free jazz do Gil-Morte-Miles. Contrapondo-se, em fragilidade sensível, à autenticidade amorosa das palavras do Lavrador, lançadas pela boca do Lavrador-Saaz-homem de Leis contra a Morte, função demográfica e serviço divino, Morte-ministro-de-Deus. Para a vida continuar, a Morte tem de exercer a sua empresa redentora, o mundo não aguenta a proliferação infinita de população.

E se a primeira versão era austera, dura e usava como cenário o corpo interior do teatro, sala e cena – primeiro, o Garcia de Resende, espaço de criação; depois, o São João –, a segunda inventava o seu próprio dispositivo num cenário do pintor João Vieira. Isto é, o cenário refazia o espaço de tribunal da Morte como um teatro global – o mundo, o teatro que o mundo refaz, estava ali. Deste modo, os espectadores estavam nessa cena da Morte, eram testemunhas daquele “homicídio”, postos como juízes diante da injustiça da ordem do absoluto divino.

É o dealbar da razão como pensamento livre que este texto de 1401 nos ensina, muito antes de quaisquer Renascimentos.

O amor é uma arma poderosa.

O amor aliado à razão, a mais livre das anti-cartilhas.

*Ator, encenador.

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25-29 Junho 1997
Teatro Nacional São João

O Lavrador da Boémia

de Johannes von Saaz
encenação Jean-Pierre Sarrazac
produção CENDREV

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna