Atropelamento e fuga

CÁTIA FAÍSCO*

Atropelamento e fuga. Atropelamento e fuga. Atropelamento e fuga.

Digo-o três vezes seguidas porque sou dona de uma memória traiçoeira e há dias em que ela não me devolve as peças todas. Por isso, repito as palavras de forma a regressar a um momento de há mais de 20 anos. Por isso, tento recordar o momento do atropelamento e da posterior fuga. E depois penso que há atropelamentos que mudam a nossa vida, que a moldam e a redirecionam.

Conto muitas vezes a história de como vim aqui parar, a este sítio sem morada, onde a escrita e o teatro se tornaram alicerces da casa onde vivo há tantos anos, de janela aberta para o mundo. Assumo-me como protagonista quando digo que a Sarah Kane me deu um valente murro no estômago com Purificados e transformou o meu caminho. Mas para que ela pudesse chegar, outros tiveram de ir derrubando pequenas paredes, fazendo do impossível possível.

Em dezembro de 1999, ainda não tinha feito 20 anos e o PoNTI era uma realidade. Lembro-me do frio, da magia do Porto e de ver teatro numa cidade que ainda me era desconhecida e longínqua. Na altura, vivia em Coimbra e, durante o dia, andava a aprender a ser jornalista. Só que aquilo que me interessava verdadeiramente era o Teatro, essa palavra com letra maiúscula e tão tentacular que punha todos os outros assuntos a um canto. A vontade de ver peças, de conhecer novos dramaturgos e encenadores era tão gigante quanto o vazio da minha carteira. E, por isso, uma ida ao Porto era uma espécie de viagem a um país estrangeiro, que precisava de ser planeada e devidamente amealhada. Ora, férias da universidade naquele ambiente pré-Natal e um entusiasmo enorme por ir ver uma peça escrita pelo Mark Ravenhill. Algum tempo antes, tinha lido Shopping and Fucking e lembro-me da conexão automática que senti com a temática, com o tipo de escrita, com a velocidade do pensamento e com a forma crua como ele lia o mundo. Era como se tivesse encontrado alguém capaz de exprimir alguns dos meus pensamentos. Por isso, quando entrei na sala do Rivoli naquele dia, senti-me uma privilegiada por poder ver a materialização das palavras do Ravenhill, num palco onde ainda nunca tinha visto nada. Desse momento, recordo ainda o facto de me sentir pequenina, aquela pequenez tonta tão típica do desconhecido e que também surge quando entramos num espaço grande.

Assistir à materialização do texto do Ravenhill numa encenação do Max Stafford-Clark era igualmente uma conjugação explosiva pela referência que o encenador era (ainda é) no panorama teatral e por poder ouvir todas aquelas palavras na língua original. (Refiro a dimensão da língua, porque sempre apreciei mais os textos no original e não em tradução. Embora reconheça, obviamente, que há traduções com muita qualidade, há palavras que simplesmente não conseguem encontrar o seu par na língua de chegada.) E a força das palavras do Ravenhill, julgava eu, precisava daquela mordacidade impactante do calão inglês.

Recordo-me facilmente de pormenores da minha experiência enquanto espectadora, esse lugar tão singular que sempre me fez (e faz) sonhar tanto e que gera em mim a vontade de escrita. A leveza com que os atores de Some Explicit Polaroids desenhavam as palavras em palco e as projetavam para o público criou em mim uma conexão com uma estética performativa e dramática que, de alguma forma, ainda hoje se mantém. Curiosamente, alguns anos mais tarde, tentei replicar este sentimento quando fui assistir a uma encenação da mesma peça, mas em português. O erro é sempre querermos repetir algo que é irrepetível.

Ser espectador é um daqueles raros privilégios: entrar numa sala cheia de história(s) e ficar uns minutos em silêncio antes de as luzes baixarem sobre a plateia, colecionar momentos de espetáculos, registar no papel frases inteiras que se decoram com o coração e, acima de tudo, arquivar memórias. Ser espectador é também sermos capazes de nos lermos, e apercebermo-nos de que com a idade e a experiência nos vamos permitindo deslumbrar com escritas, espetáculos e artistas tão distintos. E de como um atropelamento aos 20 anos se transforma, depois, numa fuga exatamente pelos mesmos motivos.

*Dramaturga.

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8+9 Dezembro 1999
Rivoli Teatro Municipal

Some Explicit Polaroids

de Mark Ravenhill
encenação Max Stafford-Clark
produção Out of Joint | Festival PoNTI _

in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna