Aqueles matas tu somente, ó morte,
Cujo nome s’esquece, e a quem na terra
Fica de todo sepultada a vida.
António Ferreira, Castro
Como falar do que este Teatro me deu, nas suas pessoas (todas as pessoas que dele conheci e conheço), nos seus espectáculos, na sala imensa e muito bela da sua casa-mãe, nas suas outras salas muito belas também, feitas de resistência quando, como em mosteiro, a pedra lhes é matéria?
Os ecos de imagens e de palavras na minha memória trazem-me as palavras de alguém com quem aprendi a amar mais plenamente a arte dos palcos e cujo nome ficará para sempre ligado à dinâmica do Teatro Nacional São João. Refiro-me a Paulo Eduardo Carvalho, ou Paulo, só, para os amigos.
Durante muitos anos ensinei Shakespeare, mas eram sobretudo as suas palavras escritas, a sua leitura, o que me fascinava e que eu tentei sempre transmitir aos meus estudantes: o estudo, em papel, desse que foi inigualável dramaturgo. O Paulo entreabriu-me novas fronteiras, desvendou-me a outra dimensão que o teatro tem, a do espectáculo – do mundo em arremedo do mundo, aos pedaços mais ou menos reconhecíveis, mais ou menos manobráveis pela cor, pelo escuro, pelas vozes: um extraordinário e maravilhoso mundo em si mesmo. E eu, que conhecia sobretudo personagens, tive com o Paulo o privilégio de conhecer pessoas do teatro e ver nelas, ao lado da integridade e da dedicação, aquilo que faz a vida valer a pena: a paixão.
Memórias e algumas fulgurações. Assistir com o Paulo, em 1996, ao espectáculo O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de la Barca, encenado por Nuno Carinhas: o esplendor dos cenários. Ou, alguns anos depois, em 2001, a emoção de ver Otelas, encenado por Nekrosius: a sua Desdémona, um pássaro correndo, voando de facto, pelo palco; e os actores, pura energia. Como se a culpa e o remorso, o sofrimento e o amor pudessem ter vida.
Encontrei há uns meses no computador ficheiros com traduções das peças que o Paulo me mandava, ainda em revisão. Entre elas, estão Sétimo Céu, de Caryl Churchill, encenada por Fernanda Lapa, em 1998; Uma Peça Mais Tarde + O Jogo de Ialta, encenadas por Nuno Carinhas, em 2003; e Não Eu, de Beckett, encenada igualmente pelo Nuno_,_ em 2006. As três peças marcaram-me de formas diversas. De Sétimo Céu (brilhante tradução para Cloud 9), recordo como me impressionou o vanguardismo de Churchill na desmontagem de identidades sexuais e sociais e na força da sátira. Lembro aquela que considero uma das grandes frases que marcam Uma Peça Mais Tarde e O Jogo de Ialta: a “infinita tundra de isolamento e solidão”, frase que ainda hoje comparo à “história feita de som e de fúria, significando nada”. Recordo, em Não Eu, o meu prazer extático, ao escutar a voz da Emília Silvestre, o palco todo escuro e a luz a projectar-se na sua boca somente: “…cá para fora… para este mundo… este mundo… uma coisa minúscula… antes da sua hora… este buraco esque – …o quê? …uma rapariga…” “Um texto magnífico, dito magnificamente, Ana”, dizia o Paulo. E assim era (e é!) a voz da Emília.
“Não louvo os que se louvam por impérios” – estava-se na Castro, encenada por Ricardo Pais, em 2003, e na sua extraordinária modernidade. “Já morreu Dona Inês, matou-a Amor.” Para mim, pela força das palavras assim ditas, era a matéria também de onde me surgiria um livro de poemas, dois anos depois. Depois, para a capa de um outro livro de poemas meus, viajaria uma fotografia do João Tuna, de uns cortinados vermelhos e lindíssimos, d’O Jogo de Ialta. Justamente. Gratidão minha pelo antídoto à solidão e ao isolamento.
Como falar, pois, do que este Teatro me deu? Só na emoção tingida de memórias o posso fazer, desejando que essas memórias sejam um pouco testemunho deles, do teatro, e do Paulo – e desse testemunho sejam passagem. Geografias das emoções, como o teatro o é também. E, como bem sabemos, aquela substância de que o teatro sempre viveu: a vida.
*Poeta.
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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna