A minha, então, tem “personalidade própria”! Como actriz, habituei-me a respeitá-la, claro, e a confiar nela. Acho-lhe graça pela forma como faz escolhas a seu bel-prazer, sem nenhuma lógica evidente: ou me reenvia à boca textos dificílimos de há vários anos, como se fosse a coisa mais natural do mundo, ou é incapaz de fixar palavras tão simples como os nomes das pessoas, deixando-me em situações bem confrangedoras, por sinal. E depois há os momentos especiais, de uma intensidade sensorial e visual de tal modo impactante que me ficam como engramas e nunca os esqueço.
Recordo esse maravilhoso festival PoNTI que, durante vários anos, o São João nos oferecia como um autêntico presente de Natal antecipado, para nosso deleite e contentamento! A sorte que tive de ver espectáculos absolutamente extraordinários. E inesquecíveis, como esse belíssimo Tartufo, de Molière, com encenação do húngaro Gábor Zsámbéki, que vi no longínquo PoNTI 2004. Passados poucos anos, o Ensemble estaria a fazer O Avarento e, pouco tempo depois, O Doente Imaginário, e a verdade é que muitas vezes senti aquele Tartufo a vaguear por ali, no meio dos ensaios, como se esperasse a deixa certa para entrar em cena…
O que ainda hoje me faz sorrir é a forma como o espectáculo expunha a nossa frágil humanidade em poderosíssimas metáforas cénicas. A personagem de Tartufo era interpretada por um jovem actor que manipulava a religião e a fé com uma destreza cínica completamente desarmante. A sua abordagem, meticulosa e sem escrúpulos, fazia com que rapidamente se apercebesse do que atormentava as almas dos outros, extraindo de cada um o “alimento” para satisfazer a sua sede de poder.
Retive na memória duas cenas especialmente fascinantes pelo rasgo imaginativo e carga sensorial. Tartufo apaixona-se por Elmira mas, estranhamente, percebia-se nele uma espécie de desespero contido: corteja-a de uma forma bruta, lambe-lhe a cara como se sentisse raiva de a desejar, como se isso o diminuísse e lhe retirasse poder, como se ela viesse roubar espaço à paixão que sente por si próprio. Vemos uma cena de sedução, mas sentimo-la como uma violação, o que a torna tremenda!
A outra cena é já na parte final do espectáculo: dois oficiais do rei vêm prender Tartufo, mas o discurso de condenação de um deles é totalmente imperceptível porque, enquanto fala, ele come amendoins e cospe as cascas para o chão! O choque é ainda mais brutal quando o vemos apertar a mão a Tartufo e a saírem os três como amigos cúmplices… Só então percebemos, de queixos caídos, que, tal como a família de Orgon, também nós somos meros peões nesses jogos perversos de gente sem escrúpulos!
Profundamente provocador e político, vestindo umas personagens com roupa de época e outras com roupa actual, o encenador escancarava perante os nossos olhos incrédulos a forma como facilmente podemos ser manipulados, seja em que século for. Desde essa altura, confesso, não raras vezes dou por mim a “ver” cascas de amendoins a projectarem-se boca fora de muita gente…
A memória é uma coisa estranha, sim. Estou-lhe grata pelas coisas que guarda e por muitas que esquece…
*Atriz, encenadora.
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28+29 Novembro 2004
Teatro Nacional São João
Tartuffe
de Molière
encenação Gábor Zsámbéki
produção Katona József Színház | Festival PoNTI/XIII Festival da União dos Teatros da Europa
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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1 _
fotografia João Tuna