Uma pequenina luz bruxuleante não na distância brilhando no extremo da estrada aqui no meio de nós e a multidão em volta une toute petite lumière just a little light una piccola… em todas as línguas do mundo uma pequena luz bruxuleante brilhando incerta mas brilhando aqui no meio de nós entre o bafo quente da multidão a ventania dos cerros e a brisa dos mares e o sopro azedo dos que a não vêem só a advinham e raivosamente assopram. Jorge de Sena – excerto de “Uma Pequenina Luz”
O ano é 2001, faz frio (recorro à minha memória, e quase posso jurar, sem recorrer a calendários, que era Inverno). O Porto atravessa a febre da Capital Europeia da Cultura, há dias em que assisto a três espectáculos. Um espectáculo anunciado, uma tenda, um autocarro: à hora marcada, estou na porta do Teatro Nacional São João, entramos no autocarro que nos levará à tenda-casa-teatro de François Tanguy e do seu Théâtre du Radeau. Alguns actores (prefiro o termo comédien, porque é mais justo com a ideia de máscara, e reverso da face que o actor tem de refazer diante de nós, o pinóquio ao contrário) atravessam a arena despida, com adereços feitos em papel de jornal: uma coroa de rei pode ser um barco ou pode ser um chapéu ou Lear enlouqueceu ou fomos nós que ensandecemos, mortos de seriedade? Línguas de fogo: o espectáculo, sabia de antemão, era formado por um corpus diverso, fragmentos de literatura canónica, na sua língua-mãe, original: a Divina Comédia em italiano, ou o Fausto em alemão. Se abrirmos o ouvido, há qualquer coisa de perceptível em todas as línguas, para lá dos dicionários – maus – que transportamos em malfadadas viagens, onde todos falam globish, o inglês de pacotilha, global. Bach e as suas cantatas em volume operático – Bach é para mim a prova de Deus, um deus melómano, fantasioso, sereno como uma brisa, gracioso ao irar-se, belo como uma gota de orvalho. A música atravessa o texto, o texto – numa língua estranha a nós, mas na sua língua mater – funde-se com a cantata, ouvimos. O som, a coisa primeira, o verbo de São João: ei-lo. De vez em quando, o espaço abre-se, expande-se, através de três telas gigantes, carregadas por actores na sombra. Tanguy sabe que o teatro não é o lugar de mensagens, não há nada a enunciar, nada a defender. Há uma boca que se abre, um sopro, uma voz. E a imagem a construir-se, mutante, à nossa frente, como as sinapses que formam o nosso pensamento. Não resisto a convocar Novarina:
Tinha usado a linguagem como um animal, tinha renunciado à cabeça, renunciado a ser, pela língua, o mestre das coisas. Tinha proibido a si próprio nomear o que quer que fosse. Para ir às coisas, para descer, ver mais abaixo. Tinha aceitado ver coisas sem ter palavras para as designar. Tinha renunciado a nomear. Até que todos os objectos em frente estivessem a igual distância, sem inteligência, sem apreensão, sem compreensão, sem acção possível. O mundo era-lhe incompreensível porque tinha renunciado a nomeá-lo, a segurá-lo na mão. Ofereceu a língua às coisas. Já não estabelecia diferença entre o mundo e o pensamento. Estava rodeado de objectos interiores e em parte alguma do mundo; ele próprio estava inteiramente fora. (excerto de Teatro dos Ouvidos, tradução de Ângela Marques, 2006)
Les Cantates foi um espectáculo-revelação. Uma liturgia não sagrada, um voo de palavras, a aparição do pensamento. Com Tanguy, disse definitivamente adeus à doença do sentido, para abraçar o teatro como o lugar do som e do não-sentido: eco, sombra, música, fantasmagoria, mãos que traçam rastros, corpos enigmáticos. O teatro é o lugar do mistério, do porvir, do que não conseguimos nomear. Ali, numa tenda fria, a mesma tenda que a companhia utiliza em França (pode levar-se um teatro às costas?); em comunhão com duas dezenas de pessoas, fui interpelada e assombrada por Goethe, Dante, Bach, Nietzsche e tantos outros. Nunca mais deixei de perseguir essa piccola luz, como diz Jorge de Sena.
*Encenadora, atriz.
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2-7 Outubro 2001
Queimódromo