Os silêncios que ficaram depois das palmas

PAULA OLIVEIRA CRUZ*

Nenhum cerco pode ser-me imposto aqui.
José Bento

No palco, sozinha, Eunice Muñoz. A atriz, a voz, o mito. Lá fora, o frio, o vento e a chuva de janeiro. Na plateia, muitas vidas contentes, porque era uma noite diferente, era noite de teatro. Como em muitas outras vezes, a minha ida ao teatro não era solitária, fui como professora, tinha comigo alunos, outros professores, e alguns encarregados de educação. Era uma turma do 10.º ano que, nesse ano letivo, já tinha ido assistir a um espetáculo (O Breve Sumário da História de Deus) e que, até ao final do 12.º ano, ali regressaria várias vezes e sob pretextos diversos, como espectadores – O Deus da Matança, a Antígona de António Pedro, a Antígona de Sófocles, O Príncipe de Homburgo, A Gaivota, Talk Show, Tambores na Noite, Turismo Infinito, Sombras, Hedda, Azul Longe nas Colinas, Exatamente Antunes, A Morte do Palhaço, Alma –, em visita aos bastidores do teatro, e como participantes nas Leituras no Mosteiro, tudo com a mão mágica da Luísa Corte-Real e do projeto Escolas no Teatro (semente do atual Centro Educativo). E ali estamos à espera das 21:30, à espera que o espetáculo comece.

Risos, deslumbre com a sala, com o teto, com o vermelho das cadeiras e os apontamentos dourados, telemóveis a piscar, uma última foto antes do aviso para desligar os dispositivos eletrónicos, mais risos. E o pensamento voa para o encanto da minha primeira vez no Teatro Nacional São João. Lembro-me de, pela mão de outros, ter entrado aqui, na primavera de 1996, para assistir a Um Auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett, com Luis Miguel Cintra, Margarida Marinho e Beatriz Batarda. Seguiram-se muitas outras peças_,_ ainda antes de ser eu a professora “que traz alunos ao teatro”, mas recordo muito bem essas primeiras vezes: Tragicomédia de Dom Duardos, O Grande Teatro do Mundo e Madame. Em Madame, cruzava-se Maria Eduarda e Capitu, Eça de Queirós e Machado de Assis, Eunice Muñoz e Eva Wilma. E, hoje, de novo, Eunice em palco. Silêncio. O espetáculo vai começar.

As luzes baixam. Uma luz forte (amarela ou alaranjada, não consigo precisar) impõe-se e o monólogo começa. Silêncio absoluto, ou quase, já que há sempre uma tosse irritante que ecoa na sala. Eunice, em palco, cresce: “a vida muda num minuto”, e este refrão começa a embalar-nos e cada um de nós começa a sentir cada palavra como se a si fosse dirigida. As palavras vão sendo sublinhadas pela mudança de cores em cena, dos tons quentes passamos aos azuis. E cada um de nós está ali com a sua bagagem, com a sua história, com os seus mortos, com as suas lágrimas por chorar, com uma vida que não ficou suspensa no foyer.

Lembro-me da atriz ali sentada, das cores fortes assinalando a passagem do tempo, e do texto em vertigem: morte, vazio, luto, aceitação e amor. “Amo-te mais do que apenas mais um dia.”

O hábito de rodar a cabeça para perceber como a peça estava a ser recebida, viu rostos adolescentes tensos, viu lágrimas, viu medo. Também eu chorei, também eu tinha os meus fantasmas.

A autoficção de Joan Didion misturou-se com as biografias de cada um: com o já vivido, com o que adivinhamos que podemos viver. Quem é que nunca acreditou que podia reverter o inevitável? Quem nunca teve esse pensamento mágico? Quem nunca desejou acordar e perceber que tudo era mentira?

Os silêncios que ficaram depois das palmas dizem muito. Quase 10 anos depois, recebi um pequeno vídeo onde se via uma pulseira de palavras tatuadas: “Amo-te mais do que apenas mais um dia.” Cristina, uma mãe que tinha ido ao teatro acompanhar a filha e assegurar boleias, marcou na pele a noite em que libertou os seus mortos.

Quase uma década depois, aquele vídeo, sem mais nada, mostrou o quão sagrada, o quão religiosa pode ser a experiência do teatro.

Ali houve comunhão, houve partilha, houve magia.

No teatro, como no poema de José Bento, nenhum cerco pode ser-nos imposto.

*Professora.

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7-31 Janeiro 2010
Teatro Nacional São João

O Ano do Pensamento Mágico

de Joan Didion
encenação Diogo Infante
produção Teatro Nacional D. Maria II | Ciclo Solos

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna