A odisseia íntima de Sanja Mitrović

ALEXANDRA MOREIRA DA SILVA*

No fundo, o teatro e a filosofia colocam a mesma questão: como podemos dirigir-nos às pessoas de maneira a fazê-las pensar a vida de uma forma diferente do habitual?
Alain Badiou

Nem só de espectáculos vive um teatro. Esta é a primeira ideia que me ocorre quando, neste exercício intranquilo – porque saudoso – de rememoração, revejo imagens, momentos e emoções cuja montagem rizomática, por vezes turva e sempre assimétrica, me conduz não só aos espectáculos, como também aos respectivos contextos e actividades paralelas: conferências, mesas-redondas, livros, programas de sala, manuais de leitura, colóquios, seminários, festivais, exposições, oficinas… Tudo isto para afirmar o óbvio: um teatro é (também) um lugar de pensamento – e o Teatro Nacional São João tem sido disto mesmo um excelente exemplo.

Foi sob o signo da viagem, tema maior da obra homérica, mas também do diálogo e da descoberta de novas linguagens e de novas possibilidades de criação, que o ciclo Odisseia: Teatro do Mundo, com coordenação de José Luís Ferreira, reuniu no TNSJ, entre Janeiro e Maio de 2011, alguns dos mais importantes pensadores da dramaturgia e das artes cénicas contemporâneas (Georges Banu, Jean-Pierre Sarrazac…), bem como um conjunto de espectáculos de criadores incontornáveis (Pina Bausch, Peter Brook, Antunes Filho…), aos quais se viriam a juntar alguns nomes menos conhecidos do público português (Josef Nadj, Yael Ronen, Sanja Mitrović…), cujas propostas inovadoras e evidente criatividade têm, hoje, amplo reconhecimento nos palcos contemporâneos.

Em Maio de 2011, no TeCA, assisti pela primeira vez ao trabalho da artista sérvia Sanja Mitrović – artista que viria a seguir regularmente noutras geografias. Instalada nos Países Baixos desde 2001, onde a vitalidade da cena flamenga continuava a propor novas formas e novas práticas performativas que muito viriam a contribuir para a renovação do tecido teatral europeu, Sanja Mitrović apresentava-se em Portugal com dois espectáculos: Will You Ever Be Happy Again? e A Short History of Crying (tendo ainda orientado uma oficina sobre teatro documental no Centro Cultural Vila Flor). Reconheço a importância da apresentação dos dois espectáculos, ainda que o primeiro, cuja concepção me pareceu mais complexa, não tenha deixado de me interpelar ao longo destes últimos anos. Não tendo, na altura, ficado completamente convencida – confesso –, percebi, no entanto, que se tratava de uma proposta dramatúrgica e cénica com uma dimensão política importante, num dispositivo bastante simples, que me fez pensar nos “biodramas” das argentinas Lola Arias e Vivi Tellas: uma mesa, uma câmara, uma ou duas caixas de onde iam sendo extraídos materiais pessoais (fotografias, pequenos objectos, desenhos, livros, textos… muitos deles projectados ao longo do espectáculo, o que permitia redimensionar o valor afectivo dos mesmos), duas actrizes (uma sérvia e outra alemã), duas histórias de vida, duas tentativas de resposta à mesma pergunta: “O que é a identidade nacional?”

Neste espectáculo – viagem ao mundo da infância em busca da identidade –, dois elementos retiveram a minha atenção: em primeiro lugar, a criação daquilo a que eu chamaria uma “partitura-arquivo”, onde a montagem/colagem de documentos autobiográficos e históricos pressupõe uma dramaturgia plural do rasto, recorrendo a uma linguagem não exclusivamente textual e apoiando-se igualmente noutros modos de escrita (musical, coreográfica, plástica…). Em segundo lugar, a instalação de um dispositivo teatral que funcionava, antes de mais, como espaço de jogo, acolhendo jogos infantis, canções, danças, jogos de sedução, futebol… e naturalmente o jogo teatral. Ora, é precisamente na articulação destes dois elementos – partitura-arquivo e dispositivo teatral – que reside o maior interesse deste espectáculo. Ao utilizar os documentos num contexto de jogo lúdico, Mitrović fazia com que o dispositivo teatral desactivasse o uso do documento enquanto “material real” (por exemplo, um capacete de soldado da Segunda Guerra Mundial), abrindo-o a um novo uso possível (a um uso teatral), criando uma tensão entre o documento e o jogo, o real e a ficção, o trágico e o cómico, o íntimo e o político. Desta forma, o carácter documental do espectáculo parecia ficar momentaneamente suspenso, sendo reactivado logo a seguir através, por exemplo, de relatos autobiográficos dirigidos ao público.

Próximo dos espectáculos pós-políticos cada vez mais frequentes na cena contemporânea, onde o testemunho e o depoimento adquirem não raras vezes um valor absoluto, Will You Ever Be Happy Again? distingue-se pela criação permanente de um espaço entre o documental e o teatral – que mais não é do que o espaço privilegiado do espectador. Experimental e inquieto, o teatro performativo de Sanja Mitrović é (também) um lugar de pensamento.

*Tradutora, professora no Instituto de Estudos de Teatro da Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III.

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13+14 Maio 2011
Teatro Carlos Alberto

WILL YOU EVER BE HAPPY AGAIN?

conceito, texto e direção Sanja Mitrović
coprodução Stand Up Tall Productions, Center for Cultural Decontamination, hetveem theater
Odisseia: Teatro do Mundo

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna