A maldição escolar dos intelectuais

João Sousa Cardoso*

A Lição de Eugène Ionesco desviada por Ricardo Pais para um divertimento é uma das peças que melhor recordo. E recordo, em particular, a abertura de As Lições. Ainda com a luz sobre a plateia e os espectadores a procurarem lugar, assistíamos a um elenco de meninas em palco, com sorriso mordaz e em vestidos rodados de tafetá com grandes bolas negras estampadas, que copiavam numa versão macabra uma coreografia de espetáculo de variedades, enquanto cada uma tinha uma faca – que víamos a intervalos, no volteio da dança – cravada nas costas. E lembro-me de uma Emília Silvestre que, como uma precetora ou a patroa de um bordel, ria com gargalhada sádica entre o coro de meninas. Como se a governanta guardasse aquele ranchinho de fêmeas e o preparasse para as garras do professor. Depois, no escuro da sala, surgia um jovem João Reis em mestre-escola punk, calças de couro negro, sexual, levantado sobre a estudante sentada a uma mesa, inicialmente submissa, a quem lecionava linguística e outras matérias. A estudante (Micaela Cardoso… quando vemos de novo esta atriz?), olhando para cima, repetia o que lhe fosse ditado e falhava, tentava agradar e fingir obediência seguindo o raciocínio do tutor, não sem seduzir, interrogar e sabotar o fio do pensamento.

Ricardo Pais identificou, no professor de Ionesco, a figura da autoridade e em particular da autoridade intelectual ou, se preferirmos, a maldição escolar dos intelectuais e o que pode existir de perverso na educação instituída. A excitação e a fúria do mestre crescem ao longo do espetáculo, ampliadas pela resistência da pupila. A dado momento, o chão ergue-se num carrossel em velocidade, cercando a jovem mulher que finge a cândida, a isolada, a reduzida, no papel treinado do aprendiz, oposto ao movimento imponderável do vivo aprendizado. E o ritmo das frases ensinadas para a repetição acumula-se, torna-se vertiginoso, as frases atropelam-se e a voz do João Reis distorce-se, multiplica-se, ruge numa mise en abyme de efeitos de sonoplastia que talvez surgissem, à época, como novidade nos palcos portugueses. As imagens de Ricardo Pais evocavam as meninas na pintura de Balthus, o comércio da carne em Genet, a iconografia nazi – um Paulo Castro em sátira do Führer – e o derradeiro cinema de Fassbinder, não sem a cor local buñueliana, porque dissertar como se nos referíssemos às Espanhas torna a crítica cómica e mais satisfatória. Guardo a memória de um espetáculo sobre a vaga de fundo que é a relação entre a sujeição e o abuso de poder nos lugares esquecidos do tempo, onde o conhecimento e as hierarquias se mantêm por indolência de análise e falta de preparação nos atores. Tudo aquilo me divertiu, enquanto estudante universitário e filho de professores primários e sindicalistas.

Mais tarde, quando assisti a Castro e a UBUs de Ricardo Pais, no contexto da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, reconheci o mesmo espírito insubmisso de As Lições. E a mesma denúncia fina da voracidade e da sede de sangue que sempre são as do poder embrutecido. E talvez esta memória me tivesse guiado – mais tarde e nesta mesma casa, o Teatro Nacional São João – na construção de uma situação ambígua entre a aula e a conferência, em Raso como o Chão (2012) e, sobretudo, em Sequências Narrativas Completas (2019), onde me entretenho numa conversa com Álvaro Lapa, escritor, pintor e meu professor na Faculdade de Belas Artes, figura obscura vinda do sul alentejano com que me debato e a quem sou grato. Talvez a memória deste Ionesco histriónico e a sátira de um teatro do poder me tenham ajudado, na idade das descobertas e com a mesma admiração que ainda hoje me merecem, a escolher atalhos mais indesejados para outro teatro. Numa lição imprevista ou, pelo contrário, num sentimento de justiça que se abate sobre nós, incansáveis principiantes.

*Encenador, artista visual.

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17 Abril – 17 Maio 1998
Teatro Nacional São João

AS LIÇÕES

a partir de A Lição de Eugène Ionesco
encenação Ricardo Pais
coprodução Festival dos Cem Dias/EXPO’98, Teatro Nacional São João
colaboração Balleteatro Companhia _

in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

fotografia João Tuna