Ricardo primeiro

PEDRO SANTOS GUERREIRO*

Talvez o silêncio.

Um espectáculo de teatro vive na memória – e a memória não é construída pelo acto consciente do encenador, é reconstruída pelo desatado inconsciente do espectador. É também por isso que uma encenação contém em si a renúncia de uma entrega à primeira salva, de palmas ou de tiros. A matéria deposita-se então imaterial em nós. Escrever sobre um espectáculo 12 anos depois não é pois descongelá-lo de uma criogenia estática, é vê-lo hoje após todo o movimento entretanto. Agora o espectáculo não foi, agora o espectáculo é. Que coisa é agora Turismo Infinito?

Talvez o silêncio.

A cabeça de Fernando Pessoa é um labirinto ao contrário, tem tantas entradas e saídas que difícil é encontrar o centro, o centro dos descentros heteronímicos. Só o abeiramos se não ficarmos paralíticos no arrebatamento do primeiro fascínio, se resistirmos ao mercadejar de citações, se nos fragilizarmos perante a torrencialidade de uma angústia maior e feraz. Ricardo Pais levou-nos de novo a entrar nessa cabeça. Já o fizera em Fausto. Fernando. Fragmentos. (1988), voltaria a fazê-lo em Sombras (2010), mas é em Turismo Infinito (2007) que organiza este silêncio sem febre.

Se em Fausto a espantosa cenografia de António Lagarto nos colocara ante compartimentos dessa cabeça, em Turismo é o cenário não caótico de Manuel Aires Mateus que nos projecta: uma rampa de madeira e um tecto de metal com declives simétricos criam uma fuga para um infinito. É nessa geometria em linha recta de chuva oblíqua, numa economia de luz, de objectos, de acção, que vemos a cabeça de quem na amurada de um barco se diz feliz por se sentir outro. Os alçapões, um rádio e um retrovisor, as sombras andróginas em círculos iluminados são formas simbólicas de revelação de um poeta sonambólico – ou neurasténico mas, merda, é lúcido. O mundo interior não é uma simulação, é a nossa realidade. É a realidade.

Muitos disseram então que o espectáculo não parecia de Ricardo Pais. Onde estavam os veludos, os vermelhos, os dourados? Não era o seu primeiro palco em declive, criador de perspectiva e escala, em que os actores se tornam maiores quando se aproximam do público, mas nunca com esta austeridade. Mas…

Lembremos: Pais era encenador e também director artístico do São João e presidente da Entidade Pública Empresarial que o Estado criara para domesticar as suas próprias frivolidades. Ele, que odeia medíocres, partia a cristaleira aos que chamam subsídio ao investimento mas “não há dinheiro” e “quando há chamam os banqueiros”, ele institucionalizara o mau génio para sair da jaula cercada de amestradores sem mestria. Esse enxofre torna-o insuportável na fraternidade dos sacanas e na irmandade dos que racionam sem raciocínio sobre as artes, os que se sublimam uns aos outros, os que cortejam o que sobeja. A sua ferocidade contra a mediania já o fizera pária entre alguns da pátria, mas essa intolerância com a incultura deslumbrada em deslumbrar, em emocionar em vez de fazer sentir e pensar e descobrir, expressa-se sobretudo não no que ele diz mas no que ele faz: no trabalho de encenação.

Não há imortais, há imorredoiros. Glosemos Pessoa: ele não é um semideus, é gente no mundo, e o mistério de Ricardo Pais é não ter mistério nenhum. Ele, que tem o teatro como horizonte ético, é inclemente com o país como um Jorge de Sena com a exuberância de um Almada Negreiros, é vaidoso como ambos, e como ambos há-de ser enterrado como “um génio” pelos que se vêem livres do seu fantasma de exigência. Essa insatisfação contra o sentimentalismo inflamatório revela uma saudade maior, a de um país que se admita ao desidério vertiginoso de ir para a cama com o mundo em vez de se enfiar na cama consigo próprio. Pais não faz veludos nem vermelhos, fez toda a vida a mesma coisa e também em Turismo Infinito: uma encenação com os melhores e um trabalho obsessivo de direcção de actores em que tudo, mas mesmo tudo, serve o texto para pô-lo em acção. Turismo Infinito usa a língua como expressão artística e é uma elaboração elocutória: tudo converge para a verdade nuclear do texto para, uma vez revelada, centrifugar a sua potência em direcção ao público. Se isso agride uma elite, essa é uma ironia suplementar, merda, somos lúcidos.

Cinco actores representam porque cinco actores dizem. O rigor deste espectáculo é uma decifração pela pureza do texto, que sem acaso parte da dramaturgia de António M. Feijó, que aplica a sua controversa tese de que Pessoa não é fragmentário, é antes uma fortíssima unidade. Turismo Infinito cardiobascula uma sofisticação subtil pela unidade de um poeta que olhou para Tanatos e fugiu de Eros. E se tem várias vozes, não é dissipação, é identidade.

Inclui-se nestas vozes a do heterónimo-mulher, Maria José, marreca sem pistola à janela de um primeiro andar demasiado rente ao chão para o suicídio. Aquele instante em que Emília Silvestre desce oitavas à voz no monólogo é um bruxuleio que a memória ouve há 12 anos. Ela, a memória, já trazia então 20 anos de encenações de Pais. Ouvi muitas vezes o humoroso lapso de lhe chamarem Ricardo Reis. Mas aquela Noite de Reis foi a Noite de Pais. E eu sem sair saí com a força atómica do texto, para afinal não escrever sobre o espectáculo mas a partir dele. É isso que agora vejo. “E o que vejo sou eu.”

*Jornalista.

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7-9 Dezembro 2007
Teatro Nacional São João

Turismo Infinito

de António M. Feijó
partir de textos de Fernando Pessoa
encenação Ricardo Pais
produção Teatro Nacional São João | Mostra Portogofone

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna