Um sonho (ou talvez não)

EUGÉNIA VASQUES*

A 25 de fevereiro de 2010, estreou, numa co-produção entre a Ar de Filmes, o Centro Cultural de Belém e o Teatro Nacional São João, o espectáculo O Príncipe de Homburgo ou a Batalha de Fehrbellin, com tradução de Luísa Costa Gomes da peça do antigo soldado Heinrich von Kleist (1777-1811), Prinz Friedrich von Homburg oder die Schlacht bei Fehrbellin (1810), e revisão textual assinada por Teresa Seruya. A dramaturgia era igualmente da responsabilidade da escritora e dramaturga Luísa Costa Gomes, que se estreava, do mesmo passo, na encenação, ao lado de António Pires.

O belo espectáculo que no Porto se apresentou a partir de 7 de maio, na sala do Teatro Carlos Alberto, tinha a seguinte distribuição: Graciano Dias era o jovem Príncipe de Homburgo, João Araújo era o Capitão Golz (e também o Criado), João Barbosa, o Marechal Dörfling, o saudoso João Ricardo, então muito elegante, interpretava o Eleitor do Brandeburgo, Luísa Cruz era a maternal Eleitora Elisa, Marcello Urgeghe, o Conde Hohenzollern, Margarida Vila‑Nova, a bela Natália d’Orange, e Mário Redondo figurava no papel do patriótico Coronel Kottwitz.

Tive a oportunidade de escrever, então, para o programa de sala do Teatro Nacional São João, um texto que intitulei “Ouvir para ver, sonhar para saber: O Príncipe de Homburgo, teatro extemporâneo”. Verifico, à leitura da minha proto análise de então, que valorizei uma interpretação sensorial da encenação – o papel da visão e da audição que nos era, sentia-o, demandado, de acordo com o que me pareceu decorrer do acentuar da alusão à alegoria da caverna platónica – e que foi a Palavra, e o seu valor, que me pareceu comandar toda a economia do espectáculo.

Mas não é disso que me lembro. Aquilo de que me recordo, agora que a vida deixou mais algumas das suas marcas, é da bonomia da voz do João Ricardo (1964-2017) – até quando a sua personagem assumia o estatuto de incontestado poder como Eleitor de Brandeburgo – e uma posição de cabeça de Margarida Vila‑Nova, ao longe, olhando de soslaio. E recordo a entrada do Príncipe, como que andando sobre nuvens, sobre um chão almofadado, sonâmbulo. E ainda as figuras da tragédia, recortadas pela luz e pela penumbra, reportando e relatando a ação in absentia. Também me lembro das árvores e de outras ressonâncias de textos de Shakespeare, para além da citação central a Calderón, o soldado-poeta, convocado através da peça A Vida É Sonho, de 1635, poucos anos antes, aliás, da batalha de Fehrbellin, que aconteceu realmente, em 1675.

Não compreendo porque terei escolhido, então, não falar da adequação dos acessórios (Joana Villaverde) e dos figurinos (Luís Mesquita) ao tempo de escrita de Kleist, o que dava ao espectáculo, de vez em quando, uma “tonalidade” melancólica – e não “trágica” –, de acordo com a estética da “tragédia burguesa” (Bürgerliches Trauerspiel), mas a evocar também os filmes de Manoel de Oliveira de acção oitocentista.

Mas ficou-me, na retina e no ouvido, uma convicção arreigada: a de que esta peça “testamentária”, disfórica, do poeta de A Bilha Quebrada (1808), é uma peça de virilidades assustadas. Um Bildungsroman que não se leva a sério. Não é herói quem parece, ainda que se mostre que a heroicidade – e não o amor! – é o caminho inescapável do jovem Príncipe. Aliás, nada é o que parece! E o Príncipe é, também ele, uma marioneta.

*Antiga crítica, professora jubilada, investigadora teatral.

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7-16 Maio 2010
Teatro Carlos Alberto

O Príncipe de Homburgo

de Heinrich von Kleist
encenação António Pires, Luísa Costa Gomes
coprodução Ar de Filmes, Centro Cultural de Belém, Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna