A minha querida Criada Zerlina, bastantes anos depois…

EDUARDO PAZ BARROSO*

1. Zerlina, de Hermann Broch, numa interpretação sublime de Eunice Muñoz, é um dos espectáculos da minha vida. E a vida, como observa Nuno Júdice, é uma sucessiva repetição de gestos, onde o sujeito ambiciona conhecer-se como se de um poema se tratasse. Ou, como escreve o dramaturgo britânico J.B. Priestley, numa citação de Agustina, que não a faz por acaso, numa nota sobre esta Zerlina: “O que verdadeiramente somos é essa sucessão de nós mesmos ao longo do tempo, e quando chegamos ao fim da nossa vida, todos esses seres sucessivos e todo esse tempo constituirá uma pessoa que na realidade somos; e então talvez outra espécie de sonho.”

2. O que somos e o que pode fazer de nós, de cada um de nós, o teatro e esta Eunice/ Zerlina em particular?

Pergunta que radicalmente me coloquei quando ocupei funções como primeiro director de um novo Teatro Nacional que pela primeira vez nascia fora de Lisboa. Esta produção feita em 1988 para “O Nacional”, como então se dizia solenemente do D. Maria, cheio de ecos (e que ecos extraordinários!) da Senhora Dona Amélia, com encenação do João Perry (alguém que na morfologia portuense do meu imaginário era muito lá de casa, fosse pela relação de amizade que lhe conhecia com o Ângelo de Sousa, fosse por um certo sentimento de pertença ao Porto que sempre lhe pressenti), foi exemplar a vários títulos, e foi assim que fez sentido programá-la aquando da reposição de 1993.

Um exemplo pode trazer consigo um estado de júbilo. E foi o que aconteceu quando escolhi esta peça complexa, trazer o Teatro Nacional D. Maria II para fora da Sala Garrett, num espírito de cooperação, de descentralização e descentramento, de reinvenção, o que, nos anos 90 do século XX, convenhamos, não era pouco.

Depois, tratava-se de experimentar a densidade da palavra. Se é verdade que os textos dos dramaturgos só se conhecem, só se comungam, num palco, a possibilidade de fazer um Hermann Broch no Teatro Nacional São João foi, para o programador que era e sou, fiel a raízes estéticas onde abunda a inutilidade kantiana da Arte e a melancolia de Hamlet, uma interpelação à ética de um Teatro Nacional então emergente no Porto, onde escasseavam equipamentos culturais de grande dimensão e ambição. Foi também uma espécie de exercício, como quem faz uma sondagem (geológica…) a um desígnio. De então para cá, o Nacional São João exerce-o com generosidade e afecto, de acordo com as intuições e vontades eclécticas das suas sucessivas direcções.

No lugar bem guardado desta memória cabe também a actriz: o sujeito e a pessoa. Eunice Muñoz, com o seu talento imenso e as suas virtudes singulares. A Eunice, de voz inesquecível, como que tocada pela profundidade do tempo, e que fora homenageada no bronze de Lagoa Henriques, na noite em que o Nacional São João abriu pela primeira vez as portas todas a um imenso público que o continua a encher de aplausos e admiração. Lembro-me bem de a ir buscar ao camarim e de atravessarmos os corredores de mãos dadas. E de ela chegar. Rir-se. E agradecer.

Com Zerlina, Eunice voltava num curto espaço de tempo ao São João e trazia com ela Joana d’Arc, Dixie Evans, Fedra, Sarah Bernhardt, Mãe Coragem, e tantas outras a quem deu vida e alma. E depois Zerlina, a criada de Os Inocentes (1950), episódio de romance decantado em monólogo, uma voz em diálogo com o silêncio de um inconsciente que ainda hoje me parece significar a muito discreta presença em palco de Carlos Pimenta, deitado num divã. E a “impaciência de conhecer” que daquela encenação me ficou até hoje.

3. Esta criada (“Narrativa da Criada Zerlina”) tem uma história para contar, numa temporalidade de mistério e sonho, desejo e frustração, serenidade e tontura. Trata-se de um trabalho de teatro onde se encontra a temperatura e a humidade da katharsis, que oferece uma tensão entre crueldade e redenção como raramente se encontra.

Num texto do programa, Maria Filomena Molder escrevia: “Em cada pausa da sua narrativa, Zerlina faz-nos ver que todo o imediato é inexorável e que o sagrado provém desse carácter inexorável e não pode existir sem rigor, sem peso, sem dureza, por isso reconhece aos numerosos matizes do prazer os seus direitos próprios.”

Somos assim reconduzidos a uma certa consciência do corpo, graças a uma fenomenologia da palavra, essa verdade provisória que o teatro consubstancia, numa teia de prazeres e cumplicidades que fazem os espectadores fugir, rindo-se muito para dentro de si próprios.

Ao convocar hoje e nestas páginas tudo isto, organizo (ou reorganizo) de certo modo um tempo que foi o meu e o da história do TNSJ, e que se espalha em fantasmas e personas várias, com a felicidade de quem gosta de ver e aprender. A “minha” Criada Zerlina sabe, por isso, a epifania.

*Professor universitário, presidente do Coliseu Porto.

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5-7 Junho 1993
Teatro Nacional São João

Zerlina

de Hermann Broch
encenação João Perry
produção Teatro Nacional D. Maria II | Festival Internacional de Teatro _

in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna