Um Verão invencível

Maria João Castro*

Ver teatro é um acto de amor, de partilha e de memória. Ser professora é exactamente o mesmo. Por isso, a minha primeira memória afectiva desta peça, sempre imperfeita e reconstruída, é a emoção que senti ao ver em palco vários antigos alunos e confirmar a qualidade do seu trabalho performativo. O Afonso, o Parra, a Joana, a Margarida, o Pedro, o Rodrigo e a Carolina trazem-nos através das suas palavras e do seu corpo a história do Gorki, numa cumplicidade com a realidade actual, a deles e a nossa.

Depois há o Gorki, que estava arrumado num recanto do meu cérebro e das minhas preferências. Eis que descubro esta peça de 1904, com ligações óbvias a outras de um dos meus dramaturgos preferidos, Tchékhov, nomeadamente O Cerejal. A aristocracia russa é substituída por uma burguesia em ascensão e os jardins e pomares dos palacetes, por uma datcha onde se passam as férias de Verão. Em comum, os mesmos diálogos sobre tudo e sobre nada, a mesma tendência para a inacção. Famílias burguesas de médicos, advogados, engenheiros, intelectuais, artistas e outras profissões liberais mascaram o seu tédio e futilidade com conversas diletantes sobre política, afectos, sexo e temas mais ou menos metafísicos à volta de uma piscina. Mas, se em Tchékhov há uma aceitação melancólica e estética da inacção, em Gorki está presente um desejo de mudança radical do estado de coisas. Estas personagens eram ridículas e patéticas na sua impotência, e algumas vozes, por vezes lúcidas, até criticavam o decadente regime czarista mas nada faziam para o mudar e aspiravam apenas a ser uma elite desse regime, tentando olvidar a massa dos pobres e marginalizados. Um texto que parecia anunciar o fracasso da revolta de 1905. Gorki, que desprezava esta burguesia moderada e ineficaz, encontraria o seu farol, Lenine, em 1906, e seria um dos ideólogos da revolução comunista de Outubro de 1917. As consequências desta acção na sociedade e na arte dariam um outro texto.

Por último, o encontro afectivo com mais uma magnífica encenação do Nuno Cardoso, a tornar próximo e actual um texto afastado no tempo e no espaço. O cenário, a música e os figurinos parecem saídos de um resort turístico na Comporta, no Douro vinhateiro ou no Algarve, em que os ricos convivem com uma classe média que se endividou para passar lá uns dias de férias. À volta de uma piscina todos gostam de discutir a necessidade de empreendedorismo, o culto das start ups, a dinâmica que o turismo trouxe às nossas cidades, os eventos culturais onde os famosos das revistas e os outros circulam para serem vistos. Nuno Cardoso diz-nos que esta é a nossa burguesia, aqui e agora, e também ela pressente que o cataclismo pode estar à nossa porta e em conversas redondas e diletantes faz inúmeros diagnósticos e desenha as mudanças necessárias, mas permanece congelada na inacção. Aquelas palavras repetidas pelas 15 personagens em palco são todos os dias murmuradas ao nosso lado. Também nós nos enredamos no mesmo tédio, nas mesmas frustrações e desejos. A simbologia da piscina vazia e em plano inclinado perturba-nos porque sabemos que a catástrofe climática se avizinha, os refugiados que nenhum muro poderá parar serão milhões, as desigualdades crescentes que explodem em violência nas grandes cidades estão iminentes e as nossas palavras e mais palavras e ainda mais palavras não levam a nada.

Retomando o início, o eterno retorno. A memória afectiva mais forte que permanece é saber que o Afonso, o Parra, a Joana, a Margarida, o Pedro, o Rodrigo e a Carolina não interpretavam apenas as personagens do Gorki, mas falavam deles e de nós. As conversas que tantas vezes tínhamos nas aulas eram também sobre isto: ser capaz, como disse Camus, de encontrar dentro de nós, neste Inverno do nosso descontentamento, um Verão invencível.

*Professora da Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo.

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9-18 Março 2017
Teatro Nacional São João

Veraneantes

de Máximo Gorki
encenação Nuno Cardoso
coprodução Ao Cabo Teatro, Centro Cultural Vila Flor, Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna